sábado, 19 de maio de 2012

Dureza é envelhecer num país cafona




A gente nasce e começa a envelhecer. E vai indo... O paladar da criança aprecia o sabor do açúcar como em nenhuma outra fase da vida. Na frente da minha escola primária haviam baleiros. Tinha um que além das balas vendia aqueles doces que ficam expostos em baixo de uma gavetinha de correr envidraçada e esses, como nenhuma bala embrulhada, jujuba, paçoquinha, amendoim açucarado ou pirulito, se insinuavam irresistivelmente sedutores para nós, que salivávamos ao ver aqueles monumentais suspiros coloridos com anilina quadrados, maiores que as nossas mãos e feitos de puro açúcar refinado. Consumíamos também uma coisa chamada "geladinho" que era nada mais, nada menos, que um saquinho comprido com "ki-suco" congelado, só que acrescido de muito açúcar e a gente ficava sugando aquilo por cima do plástico com um buraquinho que a gente cortava no canto com os dentes. A gente bebia Toddy ou Nescau com pelo menos uma colher de sopa de açúcar misturada no leite.

Na adolescência as tentações hiperadocicadas continuavam, mas a gente tinha que emagrecer. Entretanto, a minha adolescência nos anos 80 foi um período profícuo em prazeres toscos. Eu peguei a geração dos "Menudos" e usei "gel com glitter" no cabelo cortado estilo "camaleão". Não havia Mc Donalds em Brasília, mas tinha o Giraffas, pra gente se entupir de batata frita e hambúrguer que no final se transformavam tudo em sabor de catshup. Aí a gente assista "A lagoa azul" com a gravidade de quem está tendo acesso a um filme erótico, impróprio para nossas faixas etárias. Tinha uma amiga que era viciada em "Barbara Cartland". Mas lia também "Sabrina", "Bianca" e outros romances de banca de revista, que tinham no seu imaginário um efeito muitíssimo mais poderoso que a "A lagoa azul" para levá-la a êxtases de abstração romântico-erótica adolescente.

A gente cresceu e nossos paladares mudaram. O Ricky se assumiu gay, "Não se reprima" é chacota e diversão nas festas temáticas dos anos oitenta e a gente reconhece que a única coisa que prestava em Brasília nessa época e que nós curtíamos, mas nossos pais não deixavam que a gente frequentasse eram os shows do "Legião Urbana", porque sempre acabava em pancadaria e às vezes algum desavisado mais empolgado na "boca" da platéia, saía morto ou flagelado. Aquela dança que a gente imitava do Renato Russo já era meio risco de vida, porque jogava-se os braços pra qualquer lugar e rodava-se ao som daquelas canções repetitivas e circulares que davam aquele efeito hipnótico que os adolescentes tanto amam. Mesmo não frequentando os shows, não havia adolescente brasiliense que escapasse dos efeitos do "Legião". Como exigia apenas três acordes, eram as primeiras músicas que os garotos aprendiam a tocar para nos impressionar nas festas e todo mundo sabia "Faroeste caboclo" quase que de cor. O "Legião" construiu a identidade da juventude brasiliense da minha geração.

Agora estamos com quarenta anos. Cada colega seguiu um estilo de vida, mas é certo que os prazeres mudaram. Tenho colega que virou juiz erudito e gosta de ouvir o "Réquiem de Mozart", "A Pastoral do Beethoven", as obras mais desconhecidas de Vivaldi e outras coisas realmente refinadas. Tenho uma amiga muito mais culta que eu que dá aulas de linguagens da arte, tenho colega que se casou e não fez carreira nenhuma e gosta de tudo que a Rede Globo diz que é bom e tenho colega que ficou muito mais porra louca que qualquer um de nós imaginaria na adolescência que alguém pudesse ficar. Tem também os colegas "mauricinhos" que são hoje "maurições", não mudaram tanto, e as "patriçonas" que fizeram concurso público, ganham muito bem, precisam andar no "carro do ano" e viajam todos os anos para o exterior... para gastar dinheiro.

De alguma forma, acho que nenhum de nós come mais algodão doce nem churros fritos no óleo diesel empapuçado de açúcar e que também, com o passar do tempo, descobriu que os sentidos tendem a se refinar. O paladar é mais exigente, não ouvimos "Restart" ou "NX0", nos vestimos como adultos ou "mais ou menos", as casadas um dia já obrigaram o marido a assistir um ballet clássico, um filme de arte, uma exposição e até se arriscaram a ler algum clássico da literatura mundial. Quem ficou em Brasília ainda tem a oportunidade de saber aonde estão os movimentos de vanguarda e o Festival Internacional de Cinema continua sendo lá. Como convém e é natural do espírito "evolutivo" do ser humano, o tempo também contribui para que uma pessoa se aprimore na apreciação do belo e dos prazeres que ele proporciona. Na minha idade, em geral, todo mundo quer usar um perfume de qualidade. Todas nós quando adolescentes usamos os adocicados da "Água de Cheiro" e "D'Boticário" (que melhoraram muito de lá pra cá), além do que, torcíamos muito para que nos presenteassem com eles nas nossas festinhas de aniversário. Quem aos quarenta anos não teve um "Taty" e usou algum perfume com cheiro de morango ou maçã verde?

E assim deveria ser e continuar sendo. Cada um no seu quadrado descobrindo os prazeres que cada idade se permite proporcionar, os velhinhos assinando os pacotes de concerto (Standart, Executivo, Luxo e Classe Azão Azão - que permite assistir até aos concertos do Nelson Freire com a OSESP) da Sala São Paulo, viajando nos pacotes turísticos da terceira idade para conhecer suas raízes europeias, indo a Jerusalém para ver o show do Roberto Carlos e secundariamente, conhecer a "Terra Santa", tudo isso num movimento super saudável e culturalmente enriquecedor. E isso é muito legal, porque são formas de prazer que trazem a sensação de que se  amadureceu o suficiente para fruir o belo de diferentes e novas formas e perceber o mundo de um jeito que a eles não seria possível na juventude.

Só que esse país está INVESTINDO DEMAIS NA BREGUICE.  E parece que agora por aqui ser brega é "cool". Quando a gente pensa que se livrou do "Tchan" e da "Boquinha da Garrafa", das dancinhas infames do "Axé Music", surge do meio do Pará, não um boto cor de rosa, mas o "Tecno Brega". E a população da classe baixa e média que melhorou um pouquinho seu poder aquisitivo, quer, como a nova burguesia renascentista, ascender socialmente consumindo os "produtos da moda". Quando minha diarista vê qualquer coisa com a marquinha "Victoria Secret", seus olhos brilham e todos os seus mais íntimos "secrets" vêm a tona ao espirrar no corpo aqueles perfuminhos que vêm numa embalagenzinha de plástico que parece um borrifador de jardinagem. Descobri que tem um perfuminho meu que ela usa, porque eu o odeio e não uso, logo não é possível nenhuma matéria líquida desse planeta evaporar com tanta rapidez do recipiente que o abriga como acontece com tal perfume. Faço cara de paisagem e só sinto a "aura feliz e adocicada" com a qual sai daqui duas vezes por semana. Mas ela é fofa e já até dei um desses novinho pra ela, zerado, que estava passando do prazo de validade. E eu acho que é uma contribuição social deixar sua ajudante domiciliar sair da sua casa cheirando "Victoria Secret", porque me lembro dos meus tempos adolescentes em que me transportava num ônibus chamado "Paranoá Sul" que transitava no bairro rico onde eu morava e ninguém que habitava lá andava de ônibus. Quando eu fugia de casa para a Escola de Música tinha que enfrentar um cheiro abafado de "Avon" (antigo) com suor dos pedreiros e das domésticas do bairro, porque só eles e eu pegávamos aquele bendito ônibus.

Na minha opinião, todas essas pessoas estão completamente redimidas da involução cultural, estética e sensorial pela qual temos passado, porque eles estão realmente aperfeiçoando seus sentidos. Embora o celular da minha diarista me assuste toda vez que começa a tocar com o grito de uma baiana que inicia a música "à capela" com um sonoro e altíssimo "Meeeeeeeeexe mãinha", ela ouve a rádio "Alfa" que toca aquelas músicas, que muitas vezes aparecem no programa do "Amaury Júnior". E é quando zapeio o controle remoto que cai nesse exato programa, que sinto a dor de envelhecer num país cafona. "Jesuiscristo", é verdade que os ricos daqui são mesmo daquele jeito? Como é que pode uma gente com tanto poder aquisitivo gastar muuuuuito dinheiro em cafonagens sem fim? Outro dia estava ele lá na festa de um cara que escreve livros de etiqueta social. A decoração era "hipopótoma". O cara tem mania de hipopótamo e resolveu levar a coleção inteira para decorar a festa. Tinha hipopótamo de cristal e de pelúcia, o balde de gelo era um hipopótamo gigante com a boca aberta e as garrafas lá dentro. A mãe do Luciano Zafir tava lá com um longo cuja parte superior era tipo "regata" e seguia numa espécie de estampa geométrica feita de paetês dourados e prateados. Nem no tapete vermelho do Óscar (onde aos artistas é permitido certas ousadias e excentricidades) eu vi alguém com uma roupa daquela. (Obs: meu acesso ao "tapete vermelho" não passa das folheadas que dou na revista Caras quando vou à manicure ou ao podólogo).  Mas nada do que descrevi em termos estéticos se compara ao conteúdo verbal desses eventos. E tinha também um casal de dançarinos animando a festa: o cara sem camisa com uma calça que parecia de vinil preta, meio "sadô" com a cintura mais baixa possível mostrando parte da virilha, sem camisa e uma outra vestida de piriguete com um microvestidinho preto que agora deve ser "básico", e claro, com as coreografias condizentes aos seus figurinos. Isso é chique, gente?

Para terminar a minha indignação com o grau de excelência, a nota máxima do mau gosto, falta de cultura e "incenso de noção", que até hoje me deixa indignada, apesar dos incontáveis casamentos de ricos nos quais já cantei, relato a experiência mais grotesca que vivi na minha vida em termos de "breguice Classe Azão Azão... et cetera". Há muuuuito tempo atrás, talvez numa encarnação anterior, fui convidada para cantar a Ave Maria de Gounod na bênção das alianças do casamento de uma família muito rica. Primeiro o evento ocorreu num Buffet com o Padre no meio das mesas parecendo uma performance de stand up, os convidados conversavam numa boa durante a "cerimônia". O teto era coberto com treliças entremeado de florzinhas no estilo oriental. Pendiam diversos castiçais do teto, com velas acesas no meio das treliças com as florzinhas. As mesas foram decoradas com arranjos gigantescos de "rosas repolho" coloridas e velas compridas, muitas, muitas velas. Me lembro de umas "rosas gigante" com um tom roxo que nunca tinha visto. Os arranjos eram tão grandes que mal se dava para ver o rosto da pessoa sentada ao seu lado. Depois, com o som altíssimo, "descontrolado" por um DJ famoso, não dava pra fazer nem leitura labial com os que se sentaram na mesma mesa que você (porque o arranjo impedia a visão do interlocutor). Eu cantei e fui convidada para esse evento, mas devidamente bem paga. O pai da noiva "entrou" gloriosamente com a música do Aírton Sena (Pá-pá-páááá.... pá-pá-páááá....). De repente apareceram os garçons vestidos à moda marroquina. No átrio onde construíram a pista de danças tinham vários performers microvestidos fazendo acrobacias com garrafas, preparando "uns bons drink" e movimentando aquelas faixas e adereços neon que povoam as festas do tipo "rave". Antes do baile esquentar, eu já estava fervendo de dor de cabeça porque o som tava alto demais e minha audição não suporta os graves da música tecno que afetam até as regiões mais primitivas do meu sistema nervoso. Aí fui cumprimentar a família, agradecer o convite e finalmente parabenizar o pai da noiva, que me abraçou como alguém que me viu crescer e com os olhos marejados me fez o elogio mais absurdo, o qual guardarei zelosamente pelo tempo que for necessário, para contar para meus futuros netos. O ricaço disse o seguinte: "Minha filha, quando você abriu a boca para cantar aquela Ave Maria, fiquei tão emocionado que me arrepiou até os cabelos do cú." Pronto. Falei.

Agora, será que sou só eu que estou achando difícil envelhecer nessa sociedade consumista, inculta e cafona ou o problema deve ser levado para minhas sessões de análise?



"Ai seu tio pego, ai, ai, seu tio pego!"
   

               

4 comentários:

  1. ahahahaha. Marcinha, leve SIM os problemas às suas sessões. Estes "causos" são realmente desesperadores. Sem contar que vêm crescendo MUITO. É assustador.
    Beijinhos

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  2. Henrique, querido, você acha mesmo que minha analista "merece" ouvir isso? kkkkkk... Coitada! Aproveito para lhe agradecer pela presença na minha Defesa. Muito fofo você. Obrigada mesmo! Beijosss!

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    1. Imagina, eu quem tenho que agradecer. Saí de lá com muito mais conhecimento e com a resposta para uma grande pergunta que sempre me faço... "Vale a pena estudar tanto?". O mundo do jeito que está por vezes nos coloca esta dúvida. Mas concluí que vale sim, e vale muito. Beijão, admiro muito você.

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  3. Vixe... eu ainda continuo com essa mesma dúvida... Não seria melhor abrirmos uma lojinha? rs...
    Beijosssss!

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