quarta-feira, 30 de maio de 2012

Oito ou oitenta






Engraçada essa coisa de quem se dá conta de que gosta de estar nos opostos. Os extremos sempre me atraíram. Bebês e idosos - idoso mesmo - a desconcertante lucidez e a loucura, o requinte e o mau gosto autêntico, a alta culinária ou a comida do boteco vagabundo, intelectuais de verdade e excluídos da sociedade, a obra de arte e a jarra de suco com formato de abacaxi, música de alta qualidade ou fuleragem total. Meu filho Matheus e o Raul Seixas. Gosto de habitar entre pólos opostos.

Eu gosto muito de música cafona, mas tem que ser cafona de verdade. Essa breguice arrumadinha que a mídia vende, eu detesto. Música cafona tem que ser mal produzida, mal arranjada, mal gravada, mal cantada (não pode ser afinada artificialmente), mal tocada, tem que ter instrumento que soa como o tecladinho das "Organizações Tabajara", a letra precisa ser muito ruim e ter algum errinho de português e o intérprete tem que se vestir "de acordo". Isso é o brega de qualidade. As funcionárias da minha mãe ouviam rádio AM quando eu era criança e o que tocava era incrível. Os loucos são instigantes, os bebês e as crianças pequenas geniais, o mau gosto autêntico é uma estética interessantíssima e a comida dos botecos vagabundos acompanhados por uma cervejinha gelada, sensacionais. Você ainda sai com aquela emoção de ter comido algo que poderá lhe fazer mal no dia seguinte. Uma diversão incrível são os karaokês de fundo de bar (vagabundo) com volume altíssimo, microfonia, microfone falhando, caixa de som  chiando, barulheira no ambiente, gente sem noção emocionada levantando os braços, cantando junto "com emoção" e um monte de gente "alta" abrindo o coração em letras de música que choram dores de corno, filosofias de frases prontas, lugares comuns, clichês a dar e vender - mas que para eles são profundas verdades e eles mostram isso nas suas interpretações dramáticas - o acompanhamento daquele sampler vagabundo com aquelas imagens de paisagens e as letrinhas que acendem conforme a música vai passando. Mais legal ainda é a concentração do cantor que segue a letrinha na hora exata em ela que acende, na adrenalina da expectativa para obter uma "pontuação" alta. Adoro essa coerência. Por outro lado, o que dizer da gastronomia de verdade? Puro deleite, arte comestível: "arte culinária", né? E os ambientes realmente requintados frequentados por pessoas que combinam com eles? Você sai de lá se achando até mais bonito, mais elegante, mais importante, mais fino e até "diferenciado"...

O velho é uma escola. Qualquer velho é uma escola, mesmo os demenciados, os doentes e os que têm  patologias degenerativas. Todo velho é uma escola e pode lhe ensinar inclusive aquilo que você não quer para si mesmo no futuro. As verdades que você ouve diretamente e por trás do que eles dizem são conclusões de uma trajetória de vida. O "finalmente" não tem travas, pra quê ser falso e hipócrita no fim da vida? Um excluído é capaz de dizer coisas que um sociólogo famoso jamais se atreveria. Quem não tem nada a perder, não tem nada a perder. Os bebês e as crianças pequenas têm uma franqueza adorável e constrangedora e o "velho-velho" também não tem razão para dizer coisas que ele não acredita. O velho quer ser ouvido, quer mostrar que tem voz, história e ele carrega uma liberdade maravilhosa que é a de não ter que provar mais nada a ninguém. É por isso que gosto tanto de conversar com os velhos. 

O meio termo pra mim é um tédio, o medíocre e o padrão são um grande saco. O morno não o aquece no inverno, nem o refresca no verão. O clima ambiente não causa impacto, apenas mantém a sua própria temperatura. Só gosto dessa temperatura para apreciar melhor o sabor dos vegetais "à capela".

Eu gosto dos oito e dos oitenta. Gosto de observar inícios e finais de ciclos. O "oito" - além de ser o símbolo do infinito "em pé" - é a natureza humana na forma mais pura e o "oitenta" é o retorno à essa natureza. São as manifestações e expressões mais autênticas e verdadeiras. O bebê, mesmo na vida intra uterina infelizmente não é privado dos efeitos externos do ambiente no qual irá viver, mas o velho já amargou toda a cultura,  vivenciou o suficiente para apreender o mundo de uma forma particular e normalmente assumiu um posicionamento diante das dinâmicas da vida, mesmo quando não concordarmos com eles. São as suas verdades, as verdades daquilo que viveram. A irritabilidade dos velhos é o resultado de todos os seus incômodos, mas também tem muito velho chato, por se tratar de personalidades chatas, como existem criaturas insuportáveis jovens, adultas e crianças. Eu, particularmente, me interesso pelos idosos que ultrapassaram os oitenta anos. O que percebo em diversos octogenários é uma prova de resistência e de fidelidade a si mesmos. É impressionante ouvir um velho contar o que é ser velho. Quero continuar estudando os octogenários, nonagenários e puxa vida, que alegria quando  tivermos centenários para conversar. Eles trazem a história de uma era no próprio corpo, eles são o micro do macro, neles estão muitas das respostas que procuramos. Saber ouvir um velho pode funcionar melhor que uma sessão de terapia. 

Como a criança, o idoso quer sentir a valia da sua voz. Quando tratado como criança, digo aquele tratamento em que se usam simplificações desnecessárias e diminutivos, aquele em que o comunicador acha que o interlocutor tem um nível de compreensão inferior ao dele, o idoso pode até se convencer de que é incapaz de se relacionar com as demais pessoas de igual para igual. As crianças olham sempre sério para aqueles que as infantilizam e menosprezam a capacidade que têm para compreender e avaliar tudo o que é dito a elas. No fundo, as crianças tiram a maior onda com aqueles que as tratam como imbecis e são elas que acabam achando que essas pessoas são umas idiotas e estúpidas. E os idosos aceitam culturalmente serem tratados assim. Só que a criança traz em si toda a potência do início de uma vida para resistir a esses comportamentos adultos "embobecedores". Eles pressentem que haverá um momento em que poderão explodir em toda a sua individualidade... ou não... Os idosos são o oposto. Eles já usaram esse mesmo conteúdo energético durante um percurso temporal muito longo. Eles estão cansados e podem abrir mão da resistência que os impeliria a provar, mais do que qualquer jovem ou adulto, que possuem lucidez e autonomia. É por isso que eu sempre digo àqueles que convivem com velhos: não tomem a sua voz, não assumam seus lugares no mundo, não os tratem como tolos, não deixem eles concordarem que não têm capacidade para cuidar de suas vidas, não os façam acreditar que as coisas que eles dizem não têm peso nem importância, não desvalorizem suas ações, não se apropriem da dinâmica de suas vidas e não os incentivem a se acomodar. Seja a vida que for, do jeito que for, com as limitações que existirem, com o comportamento que apresentarem. Qualquer pessoa necessita sentir que alguém acredita que ela tem potenciais.

Tem um romance do escritor Lev Tolstói que se chama "A morte de Ivan Ilitch". Essa leitura mostra, com o realismo duro do russos, a vida de um moribundo que aos poucos vai perdendo o investimento daqueles que o cercam. Seu ambiente o mata antes que sua própria morte chegue.

Me disseram que após florir, o pé de manjericão morre. Deixei as florzinhas lá até para verificar se isso seria verdade. Só admirei e fotografei as lindas micro orquideazinhas, deixei-as no lugar que a natureza as colocou, no meio dos outros temperos, flores e plantas aguando-os diariamente, na mesma rotina de sempre e o pé de manjericão ainda não morreu nem deu qualquer sinal de falência. As flores já se foram, mas as folhinhas continuam temperando nossos molhos, sanduíches e pizzas com o mesmo perfume e sabor. Até me deu vontade agora de preparar um miojinho "bombado" com umas folhinhas de manjericão...








          

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