sábado, 6 de abril de 2013

Difícil é "Saber Envelhecer"




De tudo o que li até hoje sobre a velhice, apenas Cícero, filósofo romano, há 44 anos antes de Cristo, conseguiu me convencer de que a velhice pode ser um ônus. Em sua obra "Saber Envelhecer" ele discorda acerca dos fardos atribuídos à velhice, relatando como e por que encontrou a paz e a plenitude de vida aos oitenta e quatro anos de idade. Conheci esta obra durante o mestrado em Gerontologia e a reli nesta madrugada aguardando meus filhos chegarem de mais uma festa, lamentando não ter conhecido essa fabulosa lição de vida antes, na adolescência, de preferência...

"É desde a adolescência que convém se preparar para o desprezo da morte. Sem essa preparação, nenhuma serenidade é possível. Cada um de nós deve morrer, com efeito; hoje mesmo, talvez. Mas com a obsessão da morte que pode sobrevir a qualquer momento, como conservar o espírito calmo?"

Pois é... Foi nesse trecho que bati meus olhos ao abrir o livro à revelia. Uma pergunta que nos deixa sem resposta. E em seguida, uma outra advertência me convidou à releitura: "o tempo perdido jamais retorna e ninguém conhece o futuro. Contentemo-nos com o tempo que nos é dado a viver, seja qual for!"

Cícero perdeu um filho ainda jovem e imagino que o fato de ter vivenciado esse luto deva ter impactado sua forma de pensar a vida. No início do livro ele questiona: "o que reprovam à velhice?" e levanta quatro prováveis razões. 1- O afastamento da vida ativa. 2- O enfraquecimento do corpo. 3- A privação dos melhores prazeres. 4- A aproximação da morte. A essas razões o filósofo rebate argumentando com exemplos de velhices bem sucedidas e mencionando a sua própria, sempre ressaltando que o comedimento, a moderação, a disciplina, sobretudo o "saber viver" foram decisivos para que atingisse esse estágio da vida em condições exemplares. Fica muito claro em tudo o que ele diz que a vida é um processo e que a velhice coroa modos de vida nos quais se vive a juventude e a maturidade com sabedoria. Não há uma receita para se viver bem o período da velhice isoladamente, desatrelando-o de uma consciência que vem dos outros que o precedem.

"A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro. Gosto de descobrir o verdor num velho e sinais de velhice num adolescente. Aquele que compreender isso envelhecerá talvez em seu corpo, jamais em seu espírito."

Com relação ao afastamento da vida ativa, Cícero brilhantemente argumenta que cabe aos mais velhos a ocupação dos cargos públicos. Estes cargos  deveriam se destinar àqueles que possuem sabedoria, antevisão e discernimento; não fosse assim, o conselho supremo do Governo não se chamaria Senado, que significa "assembléia dos anciãos". Com relação ao enfraquecimento do corpo ressalta que é necessário conservar a saúde, alimentar-se adequadamente, praticar atividades físicas advertindo que "a herança de uma juventude voluptuosa ou libertina é um corpo extenuado." Cícero afirma que cada idade é dotada de qualidades próprias: "a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo." E ainda acrescenta a respeito do vigor físico: que usemos quando o tivermos e não nos lamentemos quando ele desaparecer. Exalta a superioridade do vigor intelectual de Pitágoras comparando-o ao atleta grego Mílon de Crótona, que se gabava de sua força física e que em idade avançada, entrou no estádio de Olímpia carregando um boi sobre os ombros. 

A visão de Cícero sobre os "melhores prazeres" é algo que esbarra completamente nos valores cultivados pela sociedade contemporânea. Na atualidade o homem não quer abrir mão dos hábitos que aludem aos prazeres que são próprios da juventude. Há um mercado que vende uma ideologia de promessa de felicidade atrelada diretamente a estes prazeres. E Cícero dirá o seguinte: "nesse estado extremo de gozo, como poderia formular o menor pensamento, refletir ou meditar legitimamente? Assim nada é mais detestável que o prazer. Quando ele é intenso e perdura, é capaz de obscurecer totalmente o espírito.(...) A volúpia corrompe o julgamento, perturba a razão, turva os olhos do espírito, se posso me exprimir assim, e nada tem a ver com a virtude.(...) Por que falar tanto do prazer? Por que em vez de censurar a velhice, devemos nos felicitar que ela não nos faça lamentar demais aos prazeres. Ao renunciarmos aos banquetes, às taças enumeráveis, renunciamos ao mesmo tempo à embriaguez, à indigestão e à insônia." 

Numa sociedade em que vemos idosos buscarem mais por adrenalina que por paz de espírito e sabedoria me questiono como, nos dias de hoje, soariam tais dizeres: "objetar-me-ão que os velhos não sentem mais tão intensamente aquela espécie de cócegas que o prazer proporciona. É verdade, mas eles tampouco sentem falta disso. Não se sofre por ser privado daquilo que não se tem saudades." E isso não sou eu quem afirma, mas um filósofo, político, jurista e orador romano que encontrou a plenitude da vida na velhice, num tempo em que não havia uma sociedade que se alimenta do consumo que busca adquirir o modo de ser e parecer jovem.

Por fim, a parte mais bela do texto é quando ele filosofa sobre a aproximação da morte. "Por que fazer disso motivo de queixa à velhice, se é um risco que a juventude compartilha? Depois do desaparecimento do meu filho me dei conta de que a morte sobrevém a qualquer idade." Durante seu texto, o filósofo compara a morte de um idoso à colheita de uma fruta madura que cai da árvore facilmente, com serenidade, ao seu tempo, enquanto a morte de um jovem seria como um fruto verde, arrancado fora de seu tempo, que castiga a planta com força e violência. Afirma ser lamentável o velho após ter vivido tanto tempo, não aprender a olhar a morte de cima e legitima sua crença na imortalidade da alma. Concebe que a maneira mais bela de morrer é com "a inteligência intacta e os sentidos despertos, deixar a natureza desfazer lentamente o que ela fez." Sobre morrer conclui: o velho não deve nem se apegar com desespero à vida, nem renunciar sem razão ao pouco que lhe resta.

Cícero não apresenta um discurso religioso, mas discorre com profundidade sobre seu universo espiritual e em vários momentos o texto assume um caráter transcendental.

"Por que eu hesitaria em vos dizer tudo o que penso da morte? Estou tanto melhor situado para compreendê-la à medida que me aproximo dela (...). Encerrados que estamos na prisão de nosso corpo, cumprimos de certo modo uma missão necessária, uma tarefa ingrata: pois a alma, de origem celeste, foi precipitada das alturas onde habitava e se encontra como que enterrada na matéria. É um lugar contrário à sua natureza divina e eterna. Creio que os Deuses imortais distribuíram as almas em corpos de homens para ajudar estes a imitarem a ordem celeste, escolhendo a firmeza moral e o espírito de moderação."

"E se um sábio morre com tanta serenidade enquanto um imbecil morre com tão grande pavor, não será porque a alma do primeiro, lúcida e clarividente, percebe que voa assim em direção ao melhor, enquanto a do segundo, obtusa, é incapaz disso?"

Penso que envelhecer é um processo no qual todos nós participamos desde a infância  e que não nos cabe pensar sobre ela apenas quando achamos que ficamos velhos. Sinto que há uma cultura e uma educação que prepara as pessoas para a juventude e maturidade, ignorando que essas fases determinarão como será a qualidade de vida na velhice em amplos aspectos. Preparar os jovens para a velhice é ensinar-lhes a raciocinar a vida com sabedoria. Esta releitura me fez refletir sobre como pensar e viver a vida no agora, nesse presente imediato que não tem retorno, que deve ser vivido em plenitude, mas ao mesmo tempo, alicerça o futuro, o qual não temos o menor acesso, nem mesmo a garantia de sua existência. A vida é mesmo um grande mistério e saber envelhecer é uma nobre e difícil arte que pode ser aprendida e aperfeiçoada em qualquer tempo.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Relações humanas sustentáveis




Neste último domingo fiquei assustada ao assistir a reportagem do Fantástico que anunciou o aumento e mostrou casos muito tristes de violência ao idoso. Quem assistiu ao noticiário pode ver a situação daquelas pessoas. Nem cabe aqui comentar o tamanho da crueldade e da covardia mostrados naquela matéria. Um verdadeiro absurdo. Um fato ficou muito claro: infelizmente aumenta-se o descaso, a indiferença, o desrespeito, o abandono e os maus tratos para com  os mais velhos na sociedade em que vivemos.

Ontem ao passear pelo facebook me chamou a atenção uma postagem que anuncia que o SUS do Estado de São Paulo no intervalo de um ano aumentou em 54% a administração de Ritalina para crianças com Transtorno de Défcit de Atenção e Hiperatividade. Tomei um susto. Quem e como foram diagnosticadas as crianças? E aonde e em que condições elas vivem e estudam? Tenho um filho ambidestro (para quem não sabe, a alfabetização de um ambidestro é mais confusa que a do "canhoto" e a dupla dominância cerebral prejudica a concentração da criança, sem contar outras inúmeras particularidades) que ainda foi estrábico na fase de alfabetização e que escapou por pouco desse diagnóstico. Sei que não há exame laboratorial para objetivá-lo, é um procedimento embasado em testes nos quais o estado emocional pode interferir. Diagnosticar TDAH é no mínimo um processo delicado. Quantos inúmeros fatores influenciam para que uma criança não consiga se concentrar em sala de aula? Aí eu ainda fiquei pensando que o SUS deve atender crianças que estudam em escolas públicas e me lembrei da situação do ensino público no Brasil...

A Organização Mundial de Saúde tem alertado diversos países, inclusive o nosso, em relação ao uso abusivo de drogas lícitas que podem ser prescritas por médicos, principalmente tranquilizantes, sedativos, analgésicos e estimulantes. A tal da Ritalina é conhecida como "droga dos concurseiros" ou "droga da obediência" por induzir, em tese, à concentração. Então estamos precisando tomar remédio para dormir, para acordar, para ter concentração, para melhorar o desempenho sexual, para acalmar nossas crianças, obtermos delas bom desempenho na escola e para que mais? Além dos medicamentos, quantas muletas temos à nossa disposição? E se estendermos esse assunto para todos os tipos de vício?  

O que eu estou querendo dizer misturando isso tudo? Estou querendo dizer que acho que estamos ficando cada vez mais inaptos para lidar com as fragilidades que são próprias dos seres humanos em todas as suas manifestações a partir das nossas próprias. Ficamos tão deslumbrados com as vitrines, os "fakes", os "fast foods" e os descartáveis que queremos nos iludir de que as relações humanas não precisam de investimento, zelo e cultivo. Estou querendo dizer também que somos muito facilmente seduzidos por válvulas de escape de todas as espécies que nos proporcionam um afastamento temporário da realidade, mas o que é real permanece latente e os problemas acumulados quando ignorados uma hora eclodem como um vulcão. Nos acostumamos com o imediatismo, perdemos a paciência,  o comprometimento, queremos que as pessoas funcionem como produtos prontos, feitos sob medida e aí está o que acontece com os velhos e com as crianças. Reflexo da dureza, do egoísmo, do narcisismo e da intransigência, que sempre rebate mais fortemente nos mais vulneráveis. 

Sempre falo de protegermos os mais frágeis, do carinho que sinto pelos idosos e alerto sobre a responsabilidade que temos em cuidar deles. Mas para que isso aconteça é primordial repensarmos nossa postura em relação à nossa própria sanidade física, emocional e mental. Sejamos mais cuidadosos e responsáveis em primeiro lugar conosco, a partir das nossas escolhas, atitudes e sobretudo, com o nosso modo de viver e nos relacionar.  

    

domingo, 23 de dezembro de 2012

Meu texto de Natal: "Coração de Mãe"




Há muito tempo penso que há dois tipos de pessoas neste mundo: as que têm e as que não têm coração de mãe. A maternidade em si não garante o instinto materno. Muitas pessoas, homens inclusive, pensam e sentem como mães, trazem em si o que eu chamaria de instinto materno.

É claro que ter um filho muda a vida de muita gente, desperta o senso de responsabilidade por ter posto mais uma vida nesse mundo e isso muda o comportamento, a forma de agir e de ver o mundo. Muda também, principalmente, a visão que temos de nossas próprias mães e pais. 

Maternidade e paternidade são questões psicanalíticas. São vínculos tão viscerais que atingem esferas atemporais. Essas questões nos acompanham vida a fora, são fatores determinantes de nossos comportamentos, da nossa forma de ser e agir no mundo. Depois que somos mães passamos a viver os dois lados da moeda: as dificuldades que temos em sermos filhos e em termos filhos. Quando essas relações estão internalizadas nunca mais conseguimos pensar em nossas vidas de uma forma egoísta, pois somos o elo de uma cadeia de raízes e frutos. Simplesmente não há como estarmos bem se nossas raízes e nossos frutos não vão bem.

O pensamento de quem tem o coração de mãe é aquele que sempre vai além de si mesmo. É aquele que nunca se vê como uma singularidade e sabe que suas ações terão um impacto no todo. Coração de mãe calcula até onde pode ir com seus individualismos, suas vontades particulares, porque sabe que as suas ações trarão consequências na vida dos seus, sejam elas boas ou más.

Vejo mães em todas as partes adaptando suas vidas para se adequarem da melhor forma à vida dos filhos e muitas vezes me comovo, porque sei que na cabeça da mãe, isso nem é visto como um sacrifício. Os primeiros anos de vida de uma pessoa exigem muito mais que dedicação e lá estão mães, pais, tios, tias, avós e tantos corações de mãe abrindo mão do seu próprio tempo e conforto, do seu próprio alimento, do seu sono, do descanso, de todo o tempo livre, pelo amor mais abnegado e verdadeiro.

O instinto de sobrevivência também acompanha as ações das pessoas que trazem em si esse coração. Todas as probabilidades de proteção para os mais frágeis povoam a mente dessas pessoas, desde os cuidados físicos até os psicológicos e sociais. Talvez o que eu esteja tentando dizer é que ter coração de mãe é ter o instinto de proteger os mais frágeis.

Muitas pessoas gostam de comparar velhos com crianças, mas isso está muito longe de ser uma verdade. O velho não pode ser educado como uma criança, ele tem uma história e o seu temperamento já foi solidificado. Não é fácil lidar com idosos, eles não são mais produtivos, normalmente o convívio é difícil, necessitam de cuidados, muitas vezes não querem receber cuidados, são teimosos, muitas vezes depressivos. Mas não podemos nos esquecer de que eles já foram pais e mães, que criaram filhos e netos, que ajudaram a cuidar de sobrinhos e enteados e que não podemos ter a memória curta. Há um momento nessa vida em que se deve sair do imediatismo para se fazer valer a história. 

Meu Feliz Natal é para todas essas almas preocupadas e cuidadoras, esses tão preciosos e generosos corações de mãe. 

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Ser o que é independentemente da idade que se tem




Assistindo ao último filme do 007 me surpreendi com uma personagem bem mais complexa do que havia visto nos filmes anteriores. Um cara um tanto quanto desacreditado de sua competência por estar "coroa", sendo submetido a testes de aptidão física, tendo que provar suas habilidades psicomotoras, cognitivas, equilíbrio emocional, contudo, muito mais consciente de si mesmo. Uma pessoa que "se sabe" funcionar bem nas situações de limite e se reconhece como é, apesar do descrédito de seus superiores e das adversidades que encontra na vida profissional. Em meio à uma primorosíssima produção, uma fotografia de encher os olhos, uma trilha sonora impecável, a trama remetia inteligentemente à várias cenas que acompanharam a trajetória do lendário James Bond. Mas desta vez, lá estava ele, "coroa" assumido e 007 sempre, por direito à sua essência.

Outro dia, ao conversar com um amigo comentei que não há necessidade de provarmos quem somos, simplesmente por sermos o que somos e que, por extensão, também não há como negarmos e nem como fugirmos disso.  Quando nascemos com o "comichão do artista" a arte permeará nossas ações, quer queiramos ou não. Na postagem "que minha irmã Telma fez para mim" ela comenta nas entrelinhas que houve uma tentativa familiar de me transformarem numa pessoa mais convencional e normalzinha. E que, por sinal, não adiantou nada. Me formei fonoaudióloga e confesso que consigo tirar água de pedra quando atuo nessa profissão, mas percebi que isso acontece apenas quando levo a arte para fonoaudiologia.

Quando um "artista que é artista" pára pra se observar, constata que é artista ao brincar com uma criança, ao arrumar a sua casa, ao preparar uma comida, ao "produzir um visual", ao escrever uma mensagem, ao comprar uma lembrança para um amigo... Não estou falando de mim, não. Muita gente é artista nessa vida, traz em si a arte de saber viver e nem se dá conta disso. Aliás, a maior arte é essa: a estética do existir.

Como o 007 já percebi que vou acabar "mostrando quem eu sou nas situações limite", dando meus tropeços aqui e ali, acertando e errando, assim como acho que deve acontecer com todo mundo, afinal, situação limite "revela". E não precisa chegar a esse ponto. Conheço um cara que é cirurgião e digo que ele é cirurgião pra pregar um quadro na parede e também o é na hora de fatiar uma torta com a precisão geométrica que só um cirurgião conseguiria mesmo. Quem tem espírito de atleta, idem. Quem tem espírito de militar, ibidem. Um dos meus filhos é um esteta visual e tem um ouvidinho de tuberculoso. Tudo para ele é imagem e som. O outro é ambidestro e tem tantas particularidades, que eu precisaria escrever uma enciclopédia só pra falar sobre o jeito diferente dele funcionar. Assim, cada pessoa vive e age de acordo com a sua essência, também cresce e envelhece de acordo com a lógica de sua própria natureza.

E o 007 agora é envelhescente! Muito legal isso... E "que envelhescente!"...



sábado, 17 de novembro de 2012

"Sete Desejos"

                 
                      


Ah se a gente soubesse de todas as sincronicidades que nos cercam e dos segredos que elas revelam. Se tivéssemos antenas para captar os recados do cosmos... Recados que depois se mostram tão transparentes e que estavam lá num passado tão recente e que não os percebemos ou que talvez apenas serviram para dar um pouco de poesia à nossa vida. E quanto valor há nessa poesia que constrói um sentido mais artístico nesse viver cotidiano que pode passar batido como uma experiência sem valor e banal. 

A poesia talvez seja o único bem realmente democrático. Há poesia na pobreza, na riqueza, no sucesso, no fracasso, na alegria, na tristeza, na decadência, na ascensão, nas perdas e nos ganhos, no amor, na solidão, na natureza, no urbano, na revolta, na resignação, na religiosidade e na falta dela, a poesia pode estar em tudo, o sentimento do poeta a tudo resiste e a tudo pode reverenciar.

Essa música que postei eu e a minha fênix tatuada na perna cantamos com um violeiro hippie numa pracinha de uma cidadezinha antiga do interior de Goiás totalmente por acaso. Aconteceu. Nem nos conhecíamos. "Recomeçando das cinzas eu faço versos tão claros, projetos, sete desejos, na fumaça do cigarro..." Ele sabia os acordes, eu parte da letra e ele as partes que eu não sabia.

"Lembro um flamboiant vermelho no desmantelo da tarde, a mala azul arrumada, que projetava a viagem. Recomeçando das cinzas vou recompondo a viagem, lembro um flamboiant vermelho no desmantelo da tarde..." Eu e meu apelido de tartaruga. Lá vai a Marcia com a casa nas costas. Não conheço alguém que tenha se mudado de casa e de cidade mais do que eu. Antes, eu e a mala de projetos. Depois, eu, a mala de projetos, os filhos, o cachorro e vamos todos pra outro lugar. A cada mudança mais uma mala arrumada  com novos projetos, a cada mudança, o ressurgir das cinzas e ciclos de renovações. Desejos que se foram e também se transformaram.

O poeta não deixou de se lembrar da "réstia de luz amarela" e afirma que agora pensa "que a estrada da vida tem ida e volta, ninguém foge do destino, desse trem que nos transporta". Muitas singelezas já vivi que não me esqueço, talvez porque, embora não saiba fazer poesia, a tenha dentro de mim. Simplicidades marcaram esse percurso tortuoso que tenho trilhado. No meio de uma tarde fresca um silêncio cúmplice, um sorvete, uma brisa e uma árvore florida. Uma gargalhada de criança, um pé sujo no sofá, um cartão no dia das mães e aquele gato sem vergonha que comia a ração da minha cachorrinha. Meu carro imundo e a trupe toda lá dentro esperando eu ir trabalhar. Uma música, um almoço de domingo, um amigo "acampando em casa". Que bom que a estrada da vida tem ida e volta. Que bom ter visto "a réstia de luz amarela".

Os dias vêm e vão, a gente segue o fluxo indo pro lado que a vida aponta com a mala azul, seguindo o trem azul, ouve uma canção dessa, se lembra de que outro dia a estava cantando na maior displicência e pensa que o destino deve ser amigo-irmão da fênix tatuada, recomeçando das cinzas, indo e vindo, para poder existir.






segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Amizade e humor para viver qualquer fase dessa vida




Não raramente desprezamos certos valores que são essenciais para o bem viver. Na verdade, acho que pensamos muito pouco sobre o que é realmente importante nessa vida e ocupamos muito tempo com inutilidades. Não nos empenhamos em cultivar valores que acrescentarão qualidade de vida ao nosso devir, renegamos nossas ações ao imediatismo, tão próprio desse tempo que vivemos, nos esquecendo de que, para que um dia possamos colher os frutos é necessário aguar a plantinha todos os dias. O ser humano ainda é um ser natural. Não somos industrializados nem descartáveis e penso que não deveríamos nos comportar como se fôssemos.  

No texto anterior comentei sobre a alta incidência da depressão na velhice por todas as dificuldades naturais que essa vivência traz em si. Mas há muitas fases na vida que também não são nada fáceis e nesses momentos penso que as únicas saídas para não sair arrancando os cabelos e chutando as paredes são o amor na amizade e um pouco de senso de humor. Ouvi dizer que tragédias e comédias andam de mãos dadas e que os atores que desempenham bem um dos gêneros geralmente também se dão muito bem no outro. 

Amizade hoje em dia é um bem de valor imensurável. Fui educada por uma mãe mineira que dizia sempre: "amigo é quem frequenta a sua casa, se não  for à sua casa, não é seu amigo. É conhecido". Concordo, mas acrescento que amigo é aquela pessoa que você sente que realmente se importa com você. Tem muita gente nesse mundo que infelizmente não consegue se importar com ninguém mais do que consigo mesmo e você entra na jogada como um acessório na vida dela. Quando ela tá ótima, nem se lembra de que você existe. E quando o procura sempre é atrás de alguma coisa...

Amizade é também uma questão de amadurecimento. A pessoa precisa ter um mínimo senso de cultivo e de importância do convívio. Para ser amigo é preciso saber olhar um pouco pro lado de fora. E bem disse o Caetano Veloso que "a poesia está para a prosa, assim como o amor para a amizade". Por isso penso que nas relações amorosas deve haver muita amizade, nas relações familiares e em todas as outras, porque nenhum afeto se sustenta sem esse tipo de amor. Eu vejo muito por aí as pessoas se esquecerem de que seu grande amigo também pode ser seu filho, seu irmão, seu marido ou sua diarista. Tem gente que consegue não ser amigo das pessoas mais próximas, mais presentes na própria vida.  A amizade precisa ser constantemente cultivada, para que seja sempre uma relação de parceria e cumplicidade. Às vezes a cumplicidade é tão grande que vira telepatia. Hoje mesmo vivi uma sincronicidade assim e acho que é por isso que estou escrevendo esse texto.

Quanto ao humor, é dom de personalidade e pra quem não tem, exercício de bom senso. "O que não tem remédio, remediado está". "Não adianta chorar sobre o leite derramado". Então vamos dar risada, que se a coisa não tem jeito, sempre há uma piadinha infame esperando para ser feita. Exemplinho ridículo: comprei um tênis para caminhar. Calcei inúmeros, andei pela loja e acabei escolhendo um de uma marca que eu não conhecia chamada "Skechers" que me caiu como uma luva. Saí toda feliz com a compra e meu filho que tem um humorzinho irônico olhou pro meu pé e perguntou: " - te pediram a identidade pra comprar esse tênis?" "- Não, por que?" " - Menor de quarenta anos não pode usar isso aí não, mãe..." Tenho uma tia que também é mestre em "humor etário", só que, no caso, ela o aplica à minha avó que tem 89 anos e apresenta sintomas de degenerescência senil. Minha tia faz uma piadinha atrás da outra e consegue fazer a minha avó rir de si mesma, das confusões que faz, da falta de memória, dos incômodos físicos e daquelas banalidades que constroem o cotidiano de todos nós. O humor da minha tia não deixa a velhice da minha avó ser triste nem depressiva.

Tenho uma amiga que criou uma "Lei" genial: a "Primeira Lei de Bozo". Essa lei maravilhosa resume-se em: "sempre rir". No final das contas, aconteça o que acontecer, não há saída melhor. Melhor do que ficar envergonhado, ansioso, deprimido, revoltado, com baixa autoestima, triste, melhor do "que dar murro em ponta de faca", "pra viver o melhor, sempre rir". 





quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Qual é o lugar do velho na nossa sociedade?




Uma das patologias mais marcantes que acompanha a velhice é a depressão. Muito difícil um idoso ao atingir a quarta idade, ou antes, não apresentar sintomas depressivos, mesmo tendo um estilo de vida saudável e condições de vida tanto no plano físico como no emocional relativamente dentro dos padrões da normalidade. Viver a velhice por si só já é uma barra. Acompanhar a degenerescência do próprio corpo e as transformações sociais que isso acarreta não é bolinho pra eles e nem será para nós.

Não é incomum me acharem neurótica na preocupação que tenho com meus filhos que atingirão a maturidade no início do ano que vem. Eu me preocupo mesmo e me preocuparei sempre, independentemente da idade que tiverem, assim como me preocupo com todas as pessoas que amo. Meu zelo é do mesmo tamanho da minha confiança e meu temor é pelo mundo e não por eles. Às vezes tenho a sensação de que determinados fenômenos sociais beiram o descontrole e quem estiver de desavisado no meio do caos vai ter que apelar para o "salve-se quem puder". E é esse o nosso atual modelo de sociedade e civilização.

A cidade de São Paulo nunca passou por um período tão insano desde que me mudei para cá. Viver em São Paulo tem sido um exercício de equilíbrio, bom senso, prudência e fé. Para quem tem acompanhado os noticiários, já sabemos que do início da semana pra cá a média de mortes por assassinato tem sido a de dez pessoas por dia, desde que a polícia decidiu dar a baixa anti o tráfico de drogas iniciado na favela de Paraisópolis na segunda feira depois das eleições. Já há algum tempo as cracolândias têm se expandido no centro e nas periferias de forma vertiginosa, as pessoas que residem nesses locais estão ilhadas e temem perder a própria vida obedecendo ao "toque de recolhimento" no final do dia imposto pelos bandidos. Comércios abandonam pontos, pessoas abandonam residências e não conseguem comercializar seus imóveis. Quem mora nesses locais precisa chamar viatura de polícia pra conseguir entrar e sair de casa tentando não ser atacado por um bando de zumbis noiados. O pior é que dentre os zumbis estão crianças, mulheres grávidas e uma infinidade de pobres coitados que já perderam toda e qualquer perspectiva de vida, mas que ameaçam a daqueles que ainda a tem.

Uma mãe, um adulto, em primeiro lugar pensará em garantir a si mesmo e aos seus. Não medirá esforços para que seus filhos sobrevivam ao caos e garantam um futuro digno para eles e seus descendentes. Trinta e cinco ônibus já foram incendiados pelos bandidos para baixar o terror na sociedade em pontos distintos da cidade no intuito de dispersar a ação dos policiais. Até que ponto você está seguro no seu bairro ninguém sabe. É factível pensar que num belo dia você possa sair para passear com o seu cachorro, seja abordado por um bandido ou por um nóia e seja lá o que Deus quiser. Nessa hora eu me lamento muito pelo Brasil ser o país da festa, da malandragem e que a seriedade não seja uma qualidade cultivada como atributo de identidade nacional. Ser alegre é uma coisa, ser alienado e se permitir tanta vulnerabilidade é outra.

Aí eu pergunto: aonde está o espaço para o velho e para o envelhecimento no meio disso tudo? Como é que as famílias vão cuidar dos seus idosos se morrem de medo de perder suas crianças? E os idosos merecem finalizar um percurso de vida em condições precárias, entre pessoas estressadas, que vivem em permanente estado de alerta? Um idoso significa um percurso inteiro de uma vida. Não faço a apologia de que todo velho seja "flor que se cheire", mas muita gente que dá trabalho na velhice foi ser humano de muito valor na juventude e na maturidade, fez muito por muita gente e merece finalizar a vida nesse planeta de forma digna. No meio do "salve-se quem puder" quem acaba saindo por último, infelizmente é o velho.

A condição humana precisa ser repensada com urgência e atitudes têm que ser tomadas. Antes que seja tarde demais e sobre para nós.