quarta-feira, 30 de maio de 2012

Oito ou oitenta






Engraçada essa coisa de quem se dá conta de que gosta de estar nos opostos. Os extremos sempre me atraíram. Bebês e idosos - idoso mesmo - a desconcertante lucidez e a loucura, o requinte e o mau gosto autêntico, a alta culinária ou a comida do boteco vagabundo, intelectuais de verdade e excluídos da sociedade, a obra de arte e a jarra de suco com formato de abacaxi, música de alta qualidade ou fuleragem total. Meu filho Matheus e o Raul Seixas. Gosto de habitar entre pólos opostos.

Eu gosto muito de música cafona, mas tem que ser cafona de verdade. Essa breguice arrumadinha que a mídia vende, eu detesto. Música cafona tem que ser mal produzida, mal arranjada, mal gravada, mal cantada (não pode ser afinada artificialmente), mal tocada, tem que ter instrumento que soa como o tecladinho das "Organizações Tabajara", a letra precisa ser muito ruim e ter algum errinho de português e o intérprete tem que se vestir "de acordo". Isso é o brega de qualidade. As funcionárias da minha mãe ouviam rádio AM quando eu era criança e o que tocava era incrível. Os loucos são instigantes, os bebês e as crianças pequenas geniais, o mau gosto autêntico é uma estética interessantíssima e a comida dos botecos vagabundos acompanhados por uma cervejinha gelada, sensacionais. Você ainda sai com aquela emoção de ter comido algo que poderá lhe fazer mal no dia seguinte. Uma diversão incrível são os karaokês de fundo de bar (vagabundo) com volume altíssimo, microfonia, microfone falhando, caixa de som  chiando, barulheira no ambiente, gente sem noção emocionada levantando os braços, cantando junto "com emoção" e um monte de gente "alta" abrindo o coração em letras de música que choram dores de corno, filosofias de frases prontas, lugares comuns, clichês a dar e vender - mas que para eles são profundas verdades e eles mostram isso nas suas interpretações dramáticas - o acompanhamento daquele sampler vagabundo com aquelas imagens de paisagens e as letrinhas que acendem conforme a música vai passando. Mais legal ainda é a concentração do cantor que segue a letrinha na hora exata em ela que acende, na adrenalina da expectativa para obter uma "pontuação" alta. Adoro essa coerência. Por outro lado, o que dizer da gastronomia de verdade? Puro deleite, arte comestível: "arte culinária", né? E os ambientes realmente requintados frequentados por pessoas que combinam com eles? Você sai de lá se achando até mais bonito, mais elegante, mais importante, mais fino e até "diferenciado"...

O velho é uma escola. Qualquer velho é uma escola, mesmo os demenciados, os doentes e os que têm  patologias degenerativas. Todo velho é uma escola e pode lhe ensinar inclusive aquilo que você não quer para si mesmo no futuro. As verdades que você ouve diretamente e por trás do que eles dizem são conclusões de uma trajetória de vida. O "finalmente" não tem travas, pra quê ser falso e hipócrita no fim da vida? Um excluído é capaz de dizer coisas que um sociólogo famoso jamais se atreveria. Quem não tem nada a perder, não tem nada a perder. Os bebês e as crianças pequenas têm uma franqueza adorável e constrangedora e o "velho-velho" também não tem razão para dizer coisas que ele não acredita. O velho quer ser ouvido, quer mostrar que tem voz, história e ele carrega uma liberdade maravilhosa que é a de não ter que provar mais nada a ninguém. É por isso que gosto tanto de conversar com os velhos. 

O meio termo pra mim é um tédio, o medíocre e o padrão são um grande saco. O morno não o aquece no inverno, nem o refresca no verão. O clima ambiente não causa impacto, apenas mantém a sua própria temperatura. Só gosto dessa temperatura para apreciar melhor o sabor dos vegetais "à capela".

Eu gosto dos oito e dos oitenta. Gosto de observar inícios e finais de ciclos. O "oito" - além de ser o símbolo do infinito "em pé" - é a natureza humana na forma mais pura e o "oitenta" é o retorno à essa natureza. São as manifestações e expressões mais autênticas e verdadeiras. O bebê, mesmo na vida intra uterina infelizmente não é privado dos efeitos externos do ambiente no qual irá viver, mas o velho já amargou toda a cultura,  vivenciou o suficiente para apreender o mundo de uma forma particular e normalmente assumiu um posicionamento diante das dinâmicas da vida, mesmo quando não concordarmos com eles. São as suas verdades, as verdades daquilo que viveram. A irritabilidade dos velhos é o resultado de todos os seus incômodos, mas também tem muito velho chato, por se tratar de personalidades chatas, como existem criaturas insuportáveis jovens, adultas e crianças. Eu, particularmente, me interesso pelos idosos que ultrapassaram os oitenta anos. O que percebo em diversos octogenários é uma prova de resistência e de fidelidade a si mesmos. É impressionante ouvir um velho contar o que é ser velho. Quero continuar estudando os octogenários, nonagenários e puxa vida, que alegria quando  tivermos centenários para conversar. Eles trazem a história de uma era no próprio corpo, eles são o micro do macro, neles estão muitas das respostas que procuramos. Saber ouvir um velho pode funcionar melhor que uma sessão de terapia. 

Como a criança, o idoso quer sentir a valia da sua voz. Quando tratado como criança, digo aquele tratamento em que se usam simplificações desnecessárias e diminutivos, aquele em que o comunicador acha que o interlocutor tem um nível de compreensão inferior ao dele, o idoso pode até se convencer de que é incapaz de se relacionar com as demais pessoas de igual para igual. As crianças olham sempre sério para aqueles que as infantilizam e menosprezam a capacidade que têm para compreender e avaliar tudo o que é dito a elas. No fundo, as crianças tiram a maior onda com aqueles que as tratam como imbecis e são elas que acabam achando que essas pessoas são umas idiotas e estúpidas. E os idosos aceitam culturalmente serem tratados assim. Só que a criança traz em si toda a potência do início de uma vida para resistir a esses comportamentos adultos "embobecedores". Eles pressentem que haverá um momento em que poderão explodir em toda a sua individualidade... ou não... Os idosos são o oposto. Eles já usaram esse mesmo conteúdo energético durante um percurso temporal muito longo. Eles estão cansados e podem abrir mão da resistência que os impeliria a provar, mais do que qualquer jovem ou adulto, que possuem lucidez e autonomia. É por isso que eu sempre digo àqueles que convivem com velhos: não tomem a sua voz, não assumam seus lugares no mundo, não os tratem como tolos, não deixem eles concordarem que não têm capacidade para cuidar de suas vidas, não os façam acreditar que as coisas que eles dizem não têm peso nem importância, não desvalorizem suas ações, não se apropriem da dinâmica de suas vidas e não os incentivem a se acomodar. Seja a vida que for, do jeito que for, com as limitações que existirem, com o comportamento que apresentarem. Qualquer pessoa necessita sentir que alguém acredita que ela tem potenciais.

Tem um romance do escritor Lev Tolstói que se chama "A morte de Ivan Ilitch". Essa leitura mostra, com o realismo duro do russos, a vida de um moribundo que aos poucos vai perdendo o investimento daqueles que o cercam. Seu ambiente o mata antes que sua própria morte chegue.

Me disseram que após florir, o pé de manjericão morre. Deixei as florzinhas lá até para verificar se isso seria verdade. Só admirei e fotografei as lindas micro orquideazinhas, deixei-as no lugar que a natureza as colocou, no meio dos outros temperos, flores e plantas aguando-os diariamente, na mesma rotina de sempre e o pé de manjericão ainda não morreu nem deu qualquer sinal de falência. As flores já se foram, mas as folhinhas continuam temperando nossos molhos, sanduíches e pizzas com o mesmo perfume e sabor. Até me deu vontade agora de preparar um miojinho "bombado" com umas folhinhas de manjericão...








          

domingo, 27 de maio de 2012

Sinceramente...




Eu, sinceramente, acho que o mundo anda muito maluco. Quando assisto os noticiários, quando vejo o comportamento das pessoas, quando converso com estranhos, conhecidos, parentes, quando observo as relações, quando me preocupo com o futuro dos meus filhos, não consigo deixar de achar que tudo anda muito esquisito por aqui. Tudo pode, todo mundo pode caminhar para qualquer lado, mas ninguém sabe para onde ir. Essa é a minha impressão.

Me parece que a maioria das pessoas se empenha em trilhar o caminho da involução. O que vejo é uma busca desenfreada pela conquista de um reconhecimento social construído em imagens e que as imagens tomaram completamente o lugar das verdades. "Beleza" se tornou um conceito indefinível, "harmonia" é palavra que caiu em desuso (exceto no caso da harmonização musical ou naquela das escolas de samba), bondade, no sentido daquilo que "é bom" também. Me parece que sou belo na medida em que meu corpo se enquadra em padrões "adequados" e "bom" quando acredito, tenho ou faço com que as pessoas acreditem que tenho dinheiro para comprar as coisas que o mercado vende como promessa de felicidade. "Tudo que é bom custa caro."

Quase não vejo espírito crítico, não vejo posicionamentos. Quando as discussões surgem, sempre circulam em torno de temas banais e inúteis. A profundidade da análise é rasa. Ou então são discussões completamente distantes dos espaços aonde podemos atuar. Ninguém quer se comprometer. As relações humanas não têm mais solidez. Nas profissões somos nômades, nos afetos superficiais, na família distantes. Não conhecemos os mais próximos, não conversamos com vizinhos, vivemos ao lado de diversas pessoas que mal sabemos quem são. As mentes estão voltadas cada vez mais para fora e menos para dentro, nem sequer nos interessamos por conhecer a nós mesmos. Preferimos nos contentar em acreditar que somos a imagem que projetamos e caímos nesse equívoco que nós mesmos construímos.  

A nossa arte é comercial, todo trabalho é comercial, as relações são comerciais, a igreja é comercial, somos todos comerciais ambulantes, nos comercializamos o tempo todo. Marketing é tudo. Quem sobrevive se não souber se vender para o mundo? E depois, as pessoas querem cobrar uma das outras qualidades não comercializáveis. Todo mundo quer do outro respeito, sinceridade, honestidade, generosidade, gratidão, AMOR. Como negociar numa "moeda" que não é a que possuo? Como conversar num idioma, se nem sequer o domino? Como esperar do outro coisas que eu não tenho para oferecer? E o pior de tudo, como ser social numa sociedade de seres individuais?

Poucas pessoas que conheci na vida foram capazes de comprar a causa de alguém ou mesmo a delas próprias. Comodismo, desprezo, preguiça, covardia, cansaço, desilusão, não sei. Não sei até que ponto todos se convenceram de que "mostrar sucesso" resolve tudo. Se o outro diz que eu sou feliz, então eu sou feliz. Se eu convenço o outro de que sou feliz, então eu sou feliz porque o outro acha que eu sou feliz? Há mais teatro nas ruas, nos escritórios, nas escolas e nos hospitais do que nas salas de espetáculo. Se bobear, dentro da sua própria casa. E tão individualista como você, o outro também é. Então, você está se importando e investindo em projetar uma imagem de si para um outro que não está nem aí para você?  

De tudo, acho que ainda resta um pouco de arte. Penso na urgência dessa arte como uma forma de dizer através de mentiras ou invenções, as verdades que na vida ninguém tem a coragem de dizer. De ser, através da obra ou do artista, um pouco daquilo que somos em essência e viver sensações e sentimentos que nosso cotidiano não nos permite, por sermos a própria matéria desse bolo social caótico, superficial e imediatista. Torço para que surja uma arte que nos redima. Torço para que surjam artistas resistentes, que realmente tenham um ideal artístico e que este se sobreponha ao financeiro e à vaidade da "fama". Torço para que pessoas postem nos seus perfis sociais imagens de arte viva e não panfletagens de si mesmos. Todo mundo está cansado de saber quem é e quem não é. A realidade anda tão banal que é só ter olhos para enxergar o óbvio. E isso não se restringe àqueles que exercem a arte como profissão. Nietzsche propôs a arte como estética de existência para qualquer um. 

Sinceramente, eu acho que quem constrói o mundo somos nós e fazer a própria parte já é uma missão heroica. Às vezes sinto muita preguiça para fazer a minha. Às vezes eu penso: pra que me empenhar pelo melhor, se não é o melhor o que "os outros" querem de mim? Quando esses pensamentos me vêm à mente sigo em frente com o "meu melhor", nem que seja só para mostrar a mim mesma que alguém ainda se preocupa em tentar fazê-lo e sê-lo. Faço o melhor que posso e consigo. Para que meus filhos não justifiquem através de mim a preguiça, a covardia, nem o oportunismo. É por isso que até a comida que preparo tem alma. E essa alma eu cultivo diariamente nos canteiros da minha sacada. Durante o meu mestrado conversei com muitos idosos. Minha dissertação foi sobre nonagenários. Uma coisa ficou muito clara pra mim: na velhice os valores mudam, ou melhor, para se viver uma boa velhice é necessário que os valores mudem. Essa foi a minha maior conclusão.


Se ainda tiver erros na redação, perdão...

                                         

  

terça-feira, 22 de maio de 2012

"Causos" de Sampa





No dia seguinte do filme do Raul, o frio resolveu dar uma trégua na cidade de São Paulo. Resolvi ir à feira da Praça da República cobrar um vendedor por ter passado meu cartão de débito duas vezes. Peguei o extrato do banco e fui. Descendo rumo ao Minhocão, me lembrei do tumulto que rolou lá, na "Virada Cultural" desse ano, que pelo visto, não "virou". Nesse mesmo Minhocão - que só quem morou no primeiro prédio acima do Metrô Marechal sabe o nojo que ele pode ficar - a Prefeitura resolveu instalar "points" de degustação de chefes famosos da cidade, na "transvirada cultural" desse ano, ao preço módico de 15 reais. A princípio, fiquei animada e o Matheus também, mas depois sentimos que não iria dar muito certo a iniciativa e nossos apetites não se abriram. Chegamos à conclusão que para nós, que conhecemos o que é o Minhocão, não daria para ter nenhuma experiência degustativa satisfatória lá. Dito e feito. Na Veja da semana seguinte publicaram no caderno local a zona que virou aquilo ali.    

Enquanto caminhava pra pegar o ônibus "Praça Ramos", ainda pensava no dia anterior e na desgrama que terminou a vida do Raul em Brasília. E eu me lembro da notícia que ele tinha morrido no show do Marcelo Nova ou do "Camisa de Vênus", enquanto eu nem me dava conta direito de quem ele era. Nessa época Raul tava um trapo, coisa bizarra de se ver, tava na cara que ia pifar e, ao invés de o internarem numa clínica que desse um "up grade" nele para que pelo menos continuasse vivo, o cara tava semimorto no palco numa turnê de 50 shows, que se transformaram nesses espetáculos grotescos, que me remetem àqueles do Coliseu, à guilhotina da Revolução Francesa e tantos outros, onde as pessoas sentem a adrenalina saltitar o corpo, pela mórbida contemplação da desgraça alheia. O cara foi morrer logo em Brasília... e eu estava lá. E segui pensando no que significa uma pessoa não dar "certo" nem pra ser "errado"...

Chegando lá o cara me reembolsou a grana sem problemas. Fui dar uma olhada nas barraquinhas e fui invadida por um grupo de senhoras (imagino que da "melhor idade" - mas abafa), que me empurrou pra longe do centro da barraquinha, tomando o meu lugar. Imagino que elas devam praticar musculação diariamente, box ou luta livre, tamanha a violência como me arremessaram do lugar que ocupava. O vendedor que me atendia imediatamente me ignorou, ao ser abordado por um grupo que se mostrou tão disposto a investir no negócio dele. Fui ver os quadros e me lembrei de experiência semelhante na PUC, uma vez que ainda nem sabia que existia a "Universidade Livre da Maturidade", muito menos que viria um dia a dar aulas lá. Estava eu atrasada para o primeiro horário da tarde, porque ainda trabalhava no Municipal até 12:30, os professores e colegas sabiam que pelo menos uns quinze minutos eu perdia do início da aula que começava às 12:45. Aí eu entrava pelo subsolo que dá de frente pra rua do prédio da pós graduação e nesse dia estava carregando partituras, livros e meu notebook que é um chumbo porque participaria de um Seminário. Esbaforida para não prejudicar os colegas que já tinham iniciado o Seminário sem mim, tinha duas opções: ou pegar o elevador e subir cinco andares ou encarar a pé a rampa. Peguei um taxi e o elevador, até por causa do peso, mas ao atingir o térreo, fui repreendida por um grupo da "Universidade Livre" que me olhou tão feio quando apitou o limite de peso do elevador, que entendi que havia uma "linha preferencial" para eles naquele horário. Saí do elevador, dando o lugar para as "senhôras" e aproveitei para gastar umas calorias até o quarto andar. Naquele dia senti saudades do tempo de gravidez onde não pegava fila nos bancos, me cediam o assento  dos ônibus e sempre me arrumavam rapidamente uma mesa nos restaurantes. E me lembrei também do Thiago, meu filho, que numas férias foi "cuspido" do metrô da Sé. Na hora em que o metrô parou, uma multidão o empurrou de uma porta expulsando-o para fora do trem pela outra, que ficava do lado oposto à que ele tentou entrar. A gente dá risada quando se lembra dessas coisas.

No meio das tendinhas que prometiam "trazer seu amor de volta em 7 dias", "descobrir seu futuro" e outras coisas dessa natureza, tinha um velhinho sem clientes em baixo de um guarda sol com uma plaquinha escrito: "BENZE". Me lembrei que de vez em quando minha avó e minhas tias me levavam para ser benzida na infância. Eu acho que elas acreditavam em "mau olhado" e tinham medo que me "mau olhassem", porque elas me achavam o máximo. E de fato, na infância eu fui uma garotinha linda, esperta e não nego que quando vejo minhas fotos até os cinco anos de idade, sinto que havia uma luz mesmo naquela criança. Fiquei um tempão papeando com o velhinho, hábito que venho cultivando há algum tempo e paguei a "benza". Tava lá na feira um quadro que há muito tempo atrás tinha me apaixonado e ele incrivelmente continuava ali... Como desconfio que tanto pedras, como animais e obras de arte escolhem seus donos, não vacilei e tive a certeza de que aquele havia sido pintado pra mim. Fiquei pensando na repreensão do Matheus quando chegasse em casa, porque o "básico" estava faltando, mas ir ao supermercado ele também pode e esse seria meu argumento além do que, para prevenir, levei dois marmitex de yakisoba pra ele. "Show de bola o yakissoba, mãe... Lindão esse quadro aí..." (...) (!)

E por falar em obra de arte, para minha querida amiga Soren que acompanha esse modesto Blog da Austrália (uma honra), aqui em São Paulo, a Prefeitura transformou os orelhões em objetos de apreciação estética nas mãos de diversos artistas plásticos. Tem uns que ficaram geniais, lindos mesmo. Gostei mais do que das vacas, porque para quem não sabe, teve uma época em que espalharam um monte da vacas coloridas pela cidade. Foi legal também, divertido. Agora eu quero ver se esses orelhões lindésimos continuarão a ser assediados pelas etiquetinhas do mercado ainda paralelo, daquela profissão que costumam dizer que é a mais antiga do mundo. Confesso que já dei risadas com esses anúncios, principalmente quando coincidia do nome do anunciante ser o mesmo de alguém conhecido. E tem uns "produtos" que até hoje não faço a menor ideia do que podem significar. Perguntei a algumas pessoas próximas mais bem informadas que eu sobre o assunto e não sei se, por vergonha em assumir que sabiam, disseram que também não sabiam do que se tratava. Uma "parada giratória" ainda é um grande mistério pra mim...

E para terminar esse texto sobre assunto nenhum, depois dos dois passeios ao ar livre no frio, amanheci ontem acamada e com febre. Mal meu "zoi" conseguia abrir e aquela sensação de quem perdeu uma luta de UFC por nocaute. De noite eu tinha que sair de qualquer jeito. Minha cadelinha precisava comer e eu também e no caminho, um senhor já bastante idoso e meio "chumbadinho" se encantou com Tininha. E eu, com esse hábito de respeitar, investigar e ser condescendente com pessoas mais velhas, deixei ele lá um pouco acariciando o pelo dela. Às vezes eu me ferro com essa de dar trela só porque a pessoa é idosa. Daí ele disse: "a melhor essência de um ser humano é aquela que se assemelha à essência de um animal..." "Naussaaa..." Bela lição de "filosofria" porque a "fria" veio logo depois. Com um "olhar à Clark Gable", o digníssimo senhor soltou: "... e a verdadeira essência de uma mulher é saber afagar a alma de um homem..." TOMA, MARCIA DEGANI!     






  

     





domingo, 20 de maio de 2012

Tempo, tempo, tempo, tempo.






Tempo, tempo, tempo, tempo.
Ontem, com alguma chantagem emocional consegui convencer meu filho de 17 anos a me acompanhar ao cinema para assistir o documentário do Raul Seixas. Figura emblemática, nunca saberei dizer o que penso sobre ele. Costumo dizer que "Ouro de tolo" foi escrito pra mim, principalmente quando ele diz que "devia estar contente por poder ir aos domingos dar pipoca aos macacos..." Como eu queria ter composto essa música... Mentira, eu queria é ter dito ao Raul que conheço a sensação de ter nascido "há dez mil anos atrás". 

Pois bem, carreguei o Má, meio que "na marra", mas como conheço meu filho, passamos num bom restaurante antes. Uma constante nele é que, quando bem dormido e bem alimentado, seu comportamento se torna significativamente mais afável. E depois da sobremesa, meu rebento já estava até esboçando um leve sorriso, um bom humor que veio do "nada" ou do açúcar e encaramos uma fila meio caótica onde trocamos umas ideias. "- Matheus, o que você não gosta?" "- MPB. Menos bossa nova... Tolero. Filme brasileiro que quer ser cult imitando filme europeu. Odeio." (Vixe... pensei. E me encho o saco com a bossa nova e seu canto gemidinho, seu estilo fresquinho e todos os patinhos, barquinhos e tardinhas... Mas não disse.) "- Por quê?" perguntei. "- Porque no meu curso de edição de vídeo o professor foi dar um exemplo de edição de filme cult nacional e o filme começava com a cena de 'um nada'... aí a segunda cena era 'o vento'... e depois 'a poeira'... e uma sequência infinita de cenas de coisa nenhuma... Eu gosto de filme com trama complexa, de preferência que eu precise assistir duas vezes para entender melhor." "- E a bossa nova?" "- Sei lá... é mais chique." (Putz, pensei).

Entramos na sala e eu imaginando se teria que tolerar um adolescente irado no final da minha noite de sábado e se tinha sido uma boa ideia convidá-lo para assistir o filme do Raul. Beleza. Melhor: "maluco beleza", o filme é ótimo. Não admitiu a criança que gostou do filme. Realmente, Raul Seixas e Matheus juntos dão a sensação de uma pintura barroca: total contraste de luz e sombra. Dualidade escancarada. Pólos diametralmente opostos. Matheus é uma pessoa completamente disposta a se enquadrar nos padrões sociais. E eu respeito. "- Muito bem editado o filme, mãe. Show de bola o cara que editou tudo isso aí." Tive a impressão que o filme confirmou tudo o que ele realmente não quer para a sua vida. Ele estava no maior bom humor e nada o tinha afetado, ao passo que despertou em mim a vontade de me afundar no copo de uma bebida forte qualquer, porque me deu um medo enorme do que o mundo faz com as pessoas emblemáticas que não se enquadram em padrão nenhum... Guardei pra mim.

Caminhamos pela Avenida Paulista e aprendi que é sempre melhor deixar o filho se manifestar primeiro e seguir com ele, apenas pontuando o diálogo. E nem poderia ser diferente. Minha cabeça estava no Raul e no incômodo de não saber "como" gosto dele e de senti-lo como um arquétipo de transgressão que tenho dentro de mim que me incomoda e ao mesmo tempo, anima. Uma só palavra para bom entendedor. Achei por bem ficar calada. E ainda bem que temos essa intimidade maravilhosa de compartilhar diferenças e silêncios. Mas ele estava a fim de trocar umas ideias. Ideias do Matheus: " - Mãe, eu entendo bem a revolta de fulano com a mãe dele e por que ele a trata mal. Deve ser duro saber que sua mãe foi uma porra louca e deu pra um monte de gente." (...) (...) (!) " - Mãe, você não acha vulgar a roupa daquela garota? Eu não sairia com uma mina vestida daquele jeito..." Não aguentei. " - E provavelmente nem ela com você. Estão quites. E olha direito que na Paulista, nesse horário, é point de casaisinhos gays. Olha direito..." "- É. Todo mundo agora é gay." "- Verdade." Rimos. "- Filho, vamos organizar uma Passeata da Vergonha Hétero? Já pensou, no dia seguinte da do Orgulho Gay, a gente sai encapuzado com umas plaquinhas escritas: 'perdão, sou hétero'." Rimos. Numa coisa eu e ele concordamos. Todo mundo tem algo gay dentro de si em maiores ou menores proporções. Matheus tem certeza que os gays têm mais bom gosto que os homens. E a gente acha também que o ambiente, a cultura, o excesso de álcool e que o uso de substâncias alucinógenas podem ajudar a aflorar esse "lado gay". Essa é a vida na Metrópole... e meu filho transita muito bem por aqui, nessa cultura e nessa realidade, prestes a atingir a maioridade.


Enquanto isso, num reino mitológico muito distante, nas terras longínquas que um dia se chamaram Batatais, tem uma senhorinha que padece com os efeitos da "melhor idade" na sua saúde. A família inteira dela a ama profundamente porque ela sempre foi e é uma pessoa adorável e admirável. Sua neta ama idosos e alguns dizem que também ama cães e bebês... Mas a verdade é que essa neta ama mesmo é a sua avó, que poderia não ser nem idosa, nem bebê e nem cachorro. A neta e a filha compartilham um ódio secreto pelos adeptos da "Seita da Melhor Idade". A filha, com toda a propriedade de quem já atingiu essa "idade" afirma despudoradamente que "é a melhor idade, sim! A melhor idade pra pessoa morrer!" Mas tudo isso é conteúdo altamente sigiloso e ninguém ousa profanar em público a "Doutrina da Melhor Idade". Elas poderiam ser linchadas, mortas ou sobreviverem sequeladas para sempre.

E assim caminha o mundo "doidio" e eu com meu filho pela Paulista... Ele, dominando as mais novas tecnologias da computação, totalmente adaptado aos novos comportamentos urbanos, apesar da própria caretice. Eu fazendo de tudo para não admitir que preferia ter gasto todas as minhas fichas na juventude, me entregado aos excessos, participado dos movimentos anarquistas, da "sociedade alternativa" - o que seria impossível, porque nasci no século passado em 1972 e o auge do Raul foi por volta de 73 - e que no fundo, não admiro, mas invejo a mãe do carinha mala "que deu pra todo mundo", por acaso, nessa época. Mas arriscar a vida nos shows do "Legião" já teria sido bom demais...  A senhorinha que habita em outro tempo e espaço não consegue compreender o funcionamento do controle remoto do televisor e é obrigada "a ver o que está passando" porque "detesta incomodar" e acho relevante acrescentar que a maior parte das horas do seu dia ela permanece defronte a esse bendito ou maldito aparelho. 

E vamos que vamos... Meus impulsos transgressores permanecerão recalcados, meu filho provavelmente se dará bem na vida e minha avó é capaz que melhore um pouco com os exercícios. Cada um vivendo seu próprio tempo e todos o mesmo tempo de todos. Já pensaram nisso e eu concordo, que há um único tempo, que é o "tempo nenhum". Talvez isso seria o que as religiões chamam de Eternidade, mas a ela ninguém tem acesso e só ao Universo ela obedece.

De vez em quando, a Eternidade dá uma palhinha. Tudo que é reto e concreto se dissolve em manchas, todo o ruído se funde numa coisa só e as palavras viram blábláblá... E isso éramos nós para mim, na Avenida Paulista. Toda mãe já fingiu que está prestando a atenção no filho e vice versa. Aquele momento era meu. "- Ê... que cara longe é essa, mãe, tá rindo do quê?" "- Tô rindo dessas coisas absurdas que você diz..." Meu filho me olhou com cara de vírgula e continuou seu "blábláblá". E eu sorri quando me lembrei de um depoimento do filme e me dei conta de que "cheiro a Raul"... Somos diabéticos e a doçura que não metabolizamos deve exalar de nossos poros, porque as pessoas costumam dizer que nosso cheiro é muito bom...       



sábado, 19 de maio de 2012

Dureza é envelhecer num país cafona




A gente nasce e começa a envelhecer. E vai indo... O paladar da criança aprecia o sabor do açúcar como em nenhuma outra fase da vida. Na frente da minha escola primária haviam baleiros. Tinha um que além das balas vendia aqueles doces que ficam expostos em baixo de uma gavetinha de correr envidraçada e esses, como nenhuma bala embrulhada, jujuba, paçoquinha, amendoim açucarado ou pirulito, se insinuavam irresistivelmente sedutores para nós, que salivávamos ao ver aqueles monumentais suspiros coloridos com anilina quadrados, maiores que as nossas mãos e feitos de puro açúcar refinado. Consumíamos também uma coisa chamada "geladinho" que era nada mais, nada menos, que um saquinho comprido com "ki-suco" congelado, só que acrescido de muito açúcar e a gente ficava sugando aquilo por cima do plástico com um buraquinho que a gente cortava no canto com os dentes. A gente bebia Toddy ou Nescau com pelo menos uma colher de sopa de açúcar misturada no leite.

Na adolescência as tentações hiperadocicadas continuavam, mas a gente tinha que emagrecer. Entretanto, a minha adolescência nos anos 80 foi um período profícuo em prazeres toscos. Eu peguei a geração dos "Menudos" e usei "gel com glitter" no cabelo cortado estilo "camaleão". Não havia Mc Donalds em Brasília, mas tinha o Giraffas, pra gente se entupir de batata frita e hambúrguer que no final se transformavam tudo em sabor de catshup. Aí a gente assista "A lagoa azul" com a gravidade de quem está tendo acesso a um filme erótico, impróprio para nossas faixas etárias. Tinha uma amiga que era viciada em "Barbara Cartland". Mas lia também "Sabrina", "Bianca" e outros romances de banca de revista, que tinham no seu imaginário um efeito muitíssimo mais poderoso que a "A lagoa azul" para levá-la a êxtases de abstração romântico-erótica adolescente.

A gente cresceu e nossos paladares mudaram. O Ricky se assumiu gay, "Não se reprima" é chacota e diversão nas festas temáticas dos anos oitenta e a gente reconhece que a única coisa que prestava em Brasília nessa época e que nós curtíamos, mas nossos pais não deixavam que a gente frequentasse eram os shows do "Legião Urbana", porque sempre acabava em pancadaria e às vezes algum desavisado mais empolgado na "boca" da platéia, saía morto ou flagelado. Aquela dança que a gente imitava do Renato Russo já era meio risco de vida, porque jogava-se os braços pra qualquer lugar e rodava-se ao som daquelas canções repetitivas e circulares que davam aquele efeito hipnótico que os adolescentes tanto amam. Mesmo não frequentando os shows, não havia adolescente brasiliense que escapasse dos efeitos do "Legião". Como exigia apenas três acordes, eram as primeiras músicas que os garotos aprendiam a tocar para nos impressionar nas festas e todo mundo sabia "Faroeste caboclo" quase que de cor. O "Legião" construiu a identidade da juventude brasiliense da minha geração.

Agora estamos com quarenta anos. Cada colega seguiu um estilo de vida, mas é certo que os prazeres mudaram. Tenho colega que virou juiz erudito e gosta de ouvir o "Réquiem de Mozart", "A Pastoral do Beethoven", as obras mais desconhecidas de Vivaldi e outras coisas realmente refinadas. Tenho uma amiga muito mais culta que eu que dá aulas de linguagens da arte, tenho colega que se casou e não fez carreira nenhuma e gosta de tudo que a Rede Globo diz que é bom e tenho colega que ficou muito mais porra louca que qualquer um de nós imaginaria na adolescência que alguém pudesse ficar. Tem também os colegas "mauricinhos" que são hoje "maurições", não mudaram tanto, e as "patriçonas" que fizeram concurso público, ganham muito bem, precisam andar no "carro do ano" e viajam todos os anos para o exterior... para gastar dinheiro.

De alguma forma, acho que nenhum de nós come mais algodão doce nem churros fritos no óleo diesel empapuçado de açúcar e que também, com o passar do tempo, descobriu que os sentidos tendem a se refinar. O paladar é mais exigente, não ouvimos "Restart" ou "NX0", nos vestimos como adultos ou "mais ou menos", as casadas um dia já obrigaram o marido a assistir um ballet clássico, um filme de arte, uma exposição e até se arriscaram a ler algum clássico da literatura mundial. Quem ficou em Brasília ainda tem a oportunidade de saber aonde estão os movimentos de vanguarda e o Festival Internacional de Cinema continua sendo lá. Como convém e é natural do espírito "evolutivo" do ser humano, o tempo também contribui para que uma pessoa se aprimore na apreciação do belo e dos prazeres que ele proporciona. Na minha idade, em geral, todo mundo quer usar um perfume de qualidade. Todas nós quando adolescentes usamos os adocicados da "Água de Cheiro" e "D'Boticário" (que melhoraram muito de lá pra cá), além do que, torcíamos muito para que nos presenteassem com eles nas nossas festinhas de aniversário. Quem aos quarenta anos não teve um "Taty" e usou algum perfume com cheiro de morango ou maçã verde?

E assim deveria ser e continuar sendo. Cada um no seu quadrado descobrindo os prazeres que cada idade se permite proporcionar, os velhinhos assinando os pacotes de concerto (Standart, Executivo, Luxo e Classe Azão Azão - que permite assistir até aos concertos do Nelson Freire com a OSESP) da Sala São Paulo, viajando nos pacotes turísticos da terceira idade para conhecer suas raízes europeias, indo a Jerusalém para ver o show do Roberto Carlos e secundariamente, conhecer a "Terra Santa", tudo isso num movimento super saudável e culturalmente enriquecedor. E isso é muito legal, porque são formas de prazer que trazem a sensação de que se  amadureceu o suficiente para fruir o belo de diferentes e novas formas e perceber o mundo de um jeito que a eles não seria possível na juventude.

Só que esse país está INVESTINDO DEMAIS NA BREGUICE.  E parece que agora por aqui ser brega é "cool". Quando a gente pensa que se livrou do "Tchan" e da "Boquinha da Garrafa", das dancinhas infames do "Axé Music", surge do meio do Pará, não um boto cor de rosa, mas o "Tecno Brega". E a população da classe baixa e média que melhorou um pouquinho seu poder aquisitivo, quer, como a nova burguesia renascentista, ascender socialmente consumindo os "produtos da moda". Quando minha diarista vê qualquer coisa com a marquinha "Victoria Secret", seus olhos brilham e todos os seus mais íntimos "secrets" vêm a tona ao espirrar no corpo aqueles perfuminhos que vêm numa embalagenzinha de plástico que parece um borrifador de jardinagem. Descobri que tem um perfuminho meu que ela usa, porque eu o odeio e não uso, logo não é possível nenhuma matéria líquida desse planeta evaporar com tanta rapidez do recipiente que o abriga como acontece com tal perfume. Faço cara de paisagem e só sinto a "aura feliz e adocicada" com a qual sai daqui duas vezes por semana. Mas ela é fofa e já até dei um desses novinho pra ela, zerado, que estava passando do prazo de validade. E eu acho que é uma contribuição social deixar sua ajudante domiciliar sair da sua casa cheirando "Victoria Secret", porque me lembro dos meus tempos adolescentes em que me transportava num ônibus chamado "Paranoá Sul" que transitava no bairro rico onde eu morava e ninguém que habitava lá andava de ônibus. Quando eu fugia de casa para a Escola de Música tinha que enfrentar um cheiro abafado de "Avon" (antigo) com suor dos pedreiros e das domésticas do bairro, porque só eles e eu pegávamos aquele bendito ônibus.

Na minha opinião, todas essas pessoas estão completamente redimidas da involução cultural, estética e sensorial pela qual temos passado, porque eles estão realmente aperfeiçoando seus sentidos. Embora o celular da minha diarista me assuste toda vez que começa a tocar com o grito de uma baiana que inicia a música "à capela" com um sonoro e altíssimo "Meeeeeeeeexe mãinha", ela ouve a rádio "Alfa" que toca aquelas músicas, que muitas vezes aparecem no programa do "Amaury Júnior". E é quando zapeio o controle remoto que cai nesse exato programa, que sinto a dor de envelhecer num país cafona. "Jesuiscristo", é verdade que os ricos daqui são mesmo daquele jeito? Como é que pode uma gente com tanto poder aquisitivo gastar muuuuuito dinheiro em cafonagens sem fim? Outro dia estava ele lá na festa de um cara que escreve livros de etiqueta social. A decoração era "hipopótoma". O cara tem mania de hipopótamo e resolveu levar a coleção inteira para decorar a festa. Tinha hipopótamo de cristal e de pelúcia, o balde de gelo era um hipopótamo gigante com a boca aberta e as garrafas lá dentro. A mãe do Luciano Zafir tava lá com um longo cuja parte superior era tipo "regata" e seguia numa espécie de estampa geométrica feita de paetês dourados e prateados. Nem no tapete vermelho do Óscar (onde aos artistas é permitido certas ousadias e excentricidades) eu vi alguém com uma roupa daquela. (Obs: meu acesso ao "tapete vermelho" não passa das folheadas que dou na revista Caras quando vou à manicure ou ao podólogo).  Mas nada do que descrevi em termos estéticos se compara ao conteúdo verbal desses eventos. E tinha também um casal de dançarinos animando a festa: o cara sem camisa com uma calça que parecia de vinil preta, meio "sadô" com a cintura mais baixa possível mostrando parte da virilha, sem camisa e uma outra vestida de piriguete com um microvestidinho preto que agora deve ser "básico", e claro, com as coreografias condizentes aos seus figurinos. Isso é chique, gente?

Para terminar a minha indignação com o grau de excelência, a nota máxima do mau gosto, falta de cultura e "incenso de noção", que até hoje me deixa indignada, apesar dos incontáveis casamentos de ricos nos quais já cantei, relato a experiência mais grotesca que vivi na minha vida em termos de "breguice Classe Azão Azão... et cetera". Há muuuuito tempo atrás, talvez numa encarnação anterior, fui convidada para cantar a Ave Maria de Gounod na bênção das alianças do casamento de uma família muito rica. Primeiro o evento ocorreu num Buffet com o Padre no meio das mesas parecendo uma performance de stand up, os convidados conversavam numa boa durante a "cerimônia". O teto era coberto com treliças entremeado de florzinhas no estilo oriental. Pendiam diversos castiçais do teto, com velas acesas no meio das treliças com as florzinhas. As mesas foram decoradas com arranjos gigantescos de "rosas repolho" coloridas e velas compridas, muitas, muitas velas. Me lembro de umas "rosas gigante" com um tom roxo que nunca tinha visto. Os arranjos eram tão grandes que mal se dava para ver o rosto da pessoa sentada ao seu lado. Depois, com o som altíssimo, "descontrolado" por um DJ famoso, não dava pra fazer nem leitura labial com os que se sentaram na mesma mesa que você (porque o arranjo impedia a visão do interlocutor). Eu cantei e fui convidada para esse evento, mas devidamente bem paga. O pai da noiva "entrou" gloriosamente com a música do Aírton Sena (Pá-pá-páááá.... pá-pá-páááá....). De repente apareceram os garçons vestidos à moda marroquina. No átrio onde construíram a pista de danças tinham vários performers microvestidos fazendo acrobacias com garrafas, preparando "uns bons drink" e movimentando aquelas faixas e adereços neon que povoam as festas do tipo "rave". Antes do baile esquentar, eu já estava fervendo de dor de cabeça porque o som tava alto demais e minha audição não suporta os graves da música tecno que afetam até as regiões mais primitivas do meu sistema nervoso. Aí fui cumprimentar a família, agradecer o convite e finalmente parabenizar o pai da noiva, que me abraçou como alguém que me viu crescer e com os olhos marejados me fez o elogio mais absurdo, o qual guardarei zelosamente pelo tempo que for necessário, para contar para meus futuros netos. O ricaço disse o seguinte: "Minha filha, quando você abriu a boca para cantar aquela Ave Maria, fiquei tão emocionado que me arrepiou até os cabelos do cú." Pronto. Falei.

Agora, será que sou só eu que estou achando difícil envelhecer nessa sociedade consumista, inculta e cafona ou o problema deve ser levado para minhas sessões de análise?



"Ai seu tio pego, ai, ai, seu tio pego!"