sábado, 6 de abril de 2013

Difícil é "Saber Envelhecer"




De tudo o que li até hoje sobre a velhice, apenas Cícero, filósofo romano, há 44 anos antes de Cristo, conseguiu me convencer de que a velhice pode ser um ônus. Em sua obra "Saber Envelhecer" ele discorda acerca dos fardos atribuídos à velhice, relatando como e por que encontrou a paz e a plenitude de vida aos oitenta e quatro anos de idade. Conheci esta obra durante o mestrado em Gerontologia e a reli nesta madrugada aguardando meus filhos chegarem de mais uma festa, lamentando não ter conhecido essa fabulosa lição de vida antes, na adolescência, de preferência...

"É desde a adolescência que convém se preparar para o desprezo da morte. Sem essa preparação, nenhuma serenidade é possível. Cada um de nós deve morrer, com efeito; hoje mesmo, talvez. Mas com a obsessão da morte que pode sobrevir a qualquer momento, como conservar o espírito calmo?"

Pois é... Foi nesse trecho que bati meus olhos ao abrir o livro à revelia. Uma pergunta que nos deixa sem resposta. E em seguida, uma outra advertência me convidou à releitura: "o tempo perdido jamais retorna e ninguém conhece o futuro. Contentemo-nos com o tempo que nos é dado a viver, seja qual for!"

Cícero perdeu um filho ainda jovem e imagino que o fato de ter vivenciado esse luto deva ter impactado sua forma de pensar a vida. No início do livro ele questiona: "o que reprovam à velhice?" e levanta quatro prováveis razões. 1- O afastamento da vida ativa. 2- O enfraquecimento do corpo. 3- A privação dos melhores prazeres. 4- A aproximação da morte. A essas razões o filósofo rebate argumentando com exemplos de velhices bem sucedidas e mencionando a sua própria, sempre ressaltando que o comedimento, a moderação, a disciplina, sobretudo o "saber viver" foram decisivos para que atingisse esse estágio da vida em condições exemplares. Fica muito claro em tudo o que ele diz que a vida é um processo e que a velhice coroa modos de vida nos quais se vive a juventude e a maturidade com sabedoria. Não há uma receita para se viver bem o período da velhice isoladamente, desatrelando-o de uma consciência que vem dos outros que o precedem.

"A velhice só é honrada na medida em que resiste, afirma seu direito, não deixa ninguém roubar-lhe seu poder e conserva sua ascendência sobre os familiares até o último suspiro. Gosto de descobrir o verdor num velho e sinais de velhice num adolescente. Aquele que compreender isso envelhecerá talvez em seu corpo, jamais em seu espírito."

Com relação ao afastamento da vida ativa, Cícero brilhantemente argumenta que cabe aos mais velhos a ocupação dos cargos públicos. Estes cargos  deveriam se destinar àqueles que possuem sabedoria, antevisão e discernimento; não fosse assim, o conselho supremo do Governo não se chamaria Senado, que significa "assembléia dos anciãos". Com relação ao enfraquecimento do corpo ressalta que é necessário conservar a saúde, alimentar-se adequadamente, praticar atividades físicas advertindo que "a herança de uma juventude voluptuosa ou libertina é um corpo extenuado." Cícero afirma que cada idade é dotada de qualidades próprias: "a fraqueza das crianças, o ímpeto dos jovens, a seriedade dos adultos, a maturidade da velhice são coisas naturais que devemos apreciar cada uma em seu tempo." E ainda acrescenta a respeito do vigor físico: que usemos quando o tivermos e não nos lamentemos quando ele desaparecer. Exalta a superioridade do vigor intelectual de Pitágoras comparando-o ao atleta grego Mílon de Crótona, que se gabava de sua força física e que em idade avançada, entrou no estádio de Olímpia carregando um boi sobre os ombros. 

A visão de Cícero sobre os "melhores prazeres" é algo que esbarra completamente nos valores cultivados pela sociedade contemporânea. Na atualidade o homem não quer abrir mão dos hábitos que aludem aos prazeres que são próprios da juventude. Há um mercado que vende uma ideologia de promessa de felicidade atrelada diretamente a estes prazeres. E Cícero dirá o seguinte: "nesse estado extremo de gozo, como poderia formular o menor pensamento, refletir ou meditar legitimamente? Assim nada é mais detestável que o prazer. Quando ele é intenso e perdura, é capaz de obscurecer totalmente o espírito.(...) A volúpia corrompe o julgamento, perturba a razão, turva os olhos do espírito, se posso me exprimir assim, e nada tem a ver com a virtude.(...) Por que falar tanto do prazer? Por que em vez de censurar a velhice, devemos nos felicitar que ela não nos faça lamentar demais aos prazeres. Ao renunciarmos aos banquetes, às taças enumeráveis, renunciamos ao mesmo tempo à embriaguez, à indigestão e à insônia." 

Numa sociedade em que vemos idosos buscarem mais por adrenalina que por paz de espírito e sabedoria me questiono como, nos dias de hoje, soariam tais dizeres: "objetar-me-ão que os velhos não sentem mais tão intensamente aquela espécie de cócegas que o prazer proporciona. É verdade, mas eles tampouco sentem falta disso. Não se sofre por ser privado daquilo que não se tem saudades." E isso não sou eu quem afirma, mas um filósofo, político, jurista e orador romano que encontrou a plenitude da vida na velhice, num tempo em que não havia uma sociedade que se alimenta do consumo que busca adquirir o modo de ser e parecer jovem.

Por fim, a parte mais bela do texto é quando ele filosofa sobre a aproximação da morte. "Por que fazer disso motivo de queixa à velhice, se é um risco que a juventude compartilha? Depois do desaparecimento do meu filho me dei conta de que a morte sobrevém a qualquer idade." Durante seu texto, o filósofo compara a morte de um idoso à colheita de uma fruta madura que cai da árvore facilmente, com serenidade, ao seu tempo, enquanto a morte de um jovem seria como um fruto verde, arrancado fora de seu tempo, que castiga a planta com força e violência. Afirma ser lamentável o velho após ter vivido tanto tempo, não aprender a olhar a morte de cima e legitima sua crença na imortalidade da alma. Concebe que a maneira mais bela de morrer é com "a inteligência intacta e os sentidos despertos, deixar a natureza desfazer lentamente o que ela fez." Sobre morrer conclui: o velho não deve nem se apegar com desespero à vida, nem renunciar sem razão ao pouco que lhe resta.

Cícero não apresenta um discurso religioso, mas discorre com profundidade sobre seu universo espiritual e em vários momentos o texto assume um caráter transcendental.

"Por que eu hesitaria em vos dizer tudo o que penso da morte? Estou tanto melhor situado para compreendê-la à medida que me aproximo dela (...). Encerrados que estamos na prisão de nosso corpo, cumprimos de certo modo uma missão necessária, uma tarefa ingrata: pois a alma, de origem celeste, foi precipitada das alturas onde habitava e se encontra como que enterrada na matéria. É um lugar contrário à sua natureza divina e eterna. Creio que os Deuses imortais distribuíram as almas em corpos de homens para ajudar estes a imitarem a ordem celeste, escolhendo a firmeza moral e o espírito de moderação."

"E se um sábio morre com tanta serenidade enquanto um imbecil morre com tão grande pavor, não será porque a alma do primeiro, lúcida e clarividente, percebe que voa assim em direção ao melhor, enquanto a do segundo, obtusa, é incapaz disso?"

Penso que envelhecer é um processo no qual todos nós participamos desde a infância  e que não nos cabe pensar sobre ela apenas quando achamos que ficamos velhos. Sinto que há uma cultura e uma educação que prepara as pessoas para a juventude e maturidade, ignorando que essas fases determinarão como será a qualidade de vida na velhice em amplos aspectos. Preparar os jovens para a velhice é ensinar-lhes a raciocinar a vida com sabedoria. Esta releitura me fez refletir sobre como pensar e viver a vida no agora, nesse presente imediato que não tem retorno, que deve ser vivido em plenitude, mas ao mesmo tempo, alicerça o futuro, o qual não temos o menor acesso, nem mesmo a garantia de sua existência. A vida é mesmo um grande mistério e saber envelhecer é uma nobre e difícil arte que pode ser aprendida e aperfeiçoada em qualquer tempo.